A primeira geração de geógrafos da USP (Universidade de São Paulo) esteve longe de formar um grupo uniforme.

É o que revela uma pesquisa da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), que reconstrói a trajetória dos docentes que ajudaram a criar o curso de geografia a partir de 1934.

O estudo mostra um cenário marcado por origens sociais distintas, visões de mundo divergentes e disputas políticas que desafiam a ideia de uma produção acadêmica homogênea.

“O objetivo é desmontar a noção de que existia uma geografia única, de matriz francesa, na USP”, afirma Rogério Silva Bezerra, autor da tese. Segundo ele, ao analisar 15 trajetórias diferentes, a pesquisa encontrou propostas variadas de entender e ensinar geografia, muitas vezes em conflito entre si.

Criado sob forte influência da chamada Escola Francesa —que defendia a formação integrada de professores e pesquisadores—, o curso de geografia nasceu junto com o de história e funcionou inicialmente no subsolo da Faculdade de Medicina, na avenida Doutor Arnaldo, zona oeste de São Paulo.

A convivência, no entanto, foi curta. As diferenças sociais e institucionais entre as duas unidades geraram atritos, e a FFCL acabou deixando o prédio em 1938.

A mudança marcou uma trajetória itinerante: o curso passou pelo Instituto de Educação Caetano de Campos, na praça da República, depois pela rua Maria Antônia, até chegar, nos anos 1970, ao campus do Butantã, onde está até hoje.

Elite se afasta

Ao contrário de outros institutos da época, os primeiros geógrafos da USP não vinham majoritariamente da elite paulistana. Embora o cargo de catedrático fosse o mais prestigiado, muitos postos foram ocupados por professores de origem popular.

“Depois que as cátedras foram preenchidas, os grupos oligárquicos perderam o interesse pela USP”, afirma Bezerra.

Foi nesse contexto que surgiram nomes como Aziz Nacib Ab’Saber, que chegou a trabalhar como jardineiro enquanto estudava e se tornaria um dos maiores geógrafos do país.

Ainda assim, o curso carregava contradições. A chamada “escola paulista de geografia” se via como moderna e científica e se colocava em oposição ao modelo mais técnico do Rio de Janeiro, ligado ao IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Ao mesmo tempo, ajudava a construir uma imagem de São Paulo como centro intelectual do país, uma narrativa que, segundo o pesquisador, escondia o passado oligárquico e escravocrata das elites locais.

Desigualdade de gênero

Outra marca da época foi a desigualdade de gênero. Embora muitas mulheres estivessem matriculadas nos cursos de geografia e história, elas tiveram pouco reconhecimento acadêmico. Em 25 anos de publicações analisadas pela pesquisa, apenas 10% dos trabalhos eram assinados por mulheres.

Esse cenário começou a mudar a partir da década de 1970, quando a produção feminina passou a crescer e, em 1986, alcançou o mesmo número de publicações masculinas.

Da geografia tradicional à crítica

A partir dos anos 1960, o grupo de geógrafos da USP se dividiu. De um lado, professores alinhados ao regime militar; de outro, pesquisadores que se aproximaram dos debates agrários e das ideias de esquerda. Dessa ruptura nasceu a chamada geografia marxista brasileira, que marcaria a segunda geração do curso.

Influenciada pelo contexto da Guerra Fria e da ditadura, a geografia uspiana passou a dialogar com modelos de planejamento inspirados no socialismo, dando origem ao que ficou conhecido como Geografia Crítica.

Hoje, o departamento de geografia da USP reúne cerca de 50 profissionais e quase 1.700 alunos. A história de sua formação, segundo a pesquisa, ajuda a entender não apenas os rumos da disciplina, mas também as disputas sociais, políticas e culturais que moldaram a universidade brasileira.

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